Lições de Arquitetura: Do quarto 01 a Avenida Fleming

2,20m x 3,60m

Essas são as medidas do meu quarto, um dos oito aqui do apartamento, uma das minhas preocupações em vir para a moradia universitária era o de ter de dividir quarto com alguém, depois da primeira infância eu tive um quarto com banheiro só pra mim e a sensação de privacidade e de estar no meu próprio reino sendo soberano dentro de um ambiente sempre me apeteceu. É um quarto de tamanho modesto, os moveis são fixos e infelizmente isso é um empecilho pra quem, assim como eu, gosta de constantemente mudar a configuração das peças do quarto.
É interessante observar que mesmo o quarto sendo um ambiente mais privativo o projeto foi concebido com uma janela gigante, ela vai do chão ao teto, não que isso seja um empecilho até porque no calor de Minas eu agradeço pelo vento que sopra 24h no meu quarto, mas morando num andar no mesmo nível do solo meio que que vivo num aquário, com a janela aberta o que eu faço aqui dentro é um show que vai desde jogatinas intermináveis com meus amigos até as trocas de roupa. Acredito que esse não era o objetivo, afinal de contas como eu disse se você estiver nos níveis mais altos as pessoas só te veem se quiserem olhar pra dentro do seu quarto, mas no meu, pra entrar no bloco passam a menos de dois metros da minha janela, quem entra no bloco dois pode apreciar as coisas pregadas na minha parede ou meu corpo pós banho. 
 

Uma sala pública que se tornou privada


Devido ao número de pessoas no apartamento o projeto foi bem generoso com a sala que é muito espaçosa, as festas nos apartamentos nunca são apertadas mesmo quando cheias, e pra combinar com o tamanho imenso decidiram usar uma janela maior ainda, pra que os estudantes não se sentissem sozinhos e conseguissem observar outras pessoas além do convívio dentro da própria bolha, não é atoa que conversas de janela a janela são comuns, tanto com os vizinhos da frente quanto com os de cima ou os de baixo.
A moradia III é a mais recente dos 3 complexos presentes em Belo Horizonte, quando chegamos aqui ninguém ligou muito pra sala aberta onde todo mundo conseguia ver o que estávamos fazendo, porém alguns meses se passaram e começou a ficar estranho, boatos que começou a chegar muita reclamação com um tom de preocupação e falta de privacidade, devido a janela gigante na sala, que nos foi entregue sem nenhuma cortina, a gente ficou fadado a ser observado fazendo almoço, almoçando, limpando a sala, basicamente fazendo qualquer coisa na sala. Alguns meses depois finalmente foi instalado em todos os apartamentos um trilho para cortina e um ambiente que foi pensado para aproximar os moradores saiu de um local mais público para uma sala privativa com o arrastar de um tecido.

3 estrelas Michelin


Um dos espaços que eu mais curto no apartamento é a cozinha, apesar de ser um apartamento ela tem um espaço ótimo, é claro que os oito moradores não conseguem usar ela ao mesmo tempo, mas até 3 ainda é tranquilo. 
Pra mim é um lugar emblemático onde a questão de territorialidade é acentuada, nós temos dois armários, um de baixo da pia onde ficam as panelas, potes e formas (itens compartilhados) e um em baixo do balcão, onde a gente guarda comida, prato, copo e talher (esses três últimos também compartilhados).
Desde o início ficou bem demarcado de quem era cada espaço no armário de comida, tanto pela maneira como os itens são agrupados quanto por quais itens se encontram lá, e isso também reflete na geladeira, não temos uma prateleira pra cada morador, então a divisão acontece a partir de uma convenção aceita por todos, mas de tempos em tempos alguém consome comida de outra pessoa e diz ter se confundido, a territorialidade na cozinha é nítida, a maneira que certos alimentos são colocados no armário a fim de encontrar algum ladrão de bolacha, ou então alguns itens como sal que acaba virando domínio público de todos ficam em cima do balcão e são guardados de forma menos calculada e até mesmo que demonstre que ele está ali e pode ser consumido por todos.
Na geladeira o territorialismo atinge níveis mais altos com alguns itens, caixas de leite idênticas as vezes aparecem com nomes, o mesmo acontece com potes de margarina, cartelas de ovos e chocolates abertos são minuciosamente colocados de maneira que não saiam do espaço convencional de cada um para não ter erro de quem é o dono, até os dentes de alho e cebolas cortadas ao meio são guardadas com mais carinho assim ninguém usa o que não é seu, mas não é como se a gente tivesse conversado sobre essa questão, é um movimento natural que aconteceu especificamente nesse espaço cozinha, como um reflexo de alguma parte do nosso gene ligado a alimentação e a noção automática e subconsciente de como é importante que defendamos nossas fontes de alimento. 

Botando a roupa pra quarar

A lavanderia é um ambiente interessante de se observar também, ela possui um tanque, a máquina de lavar, os varais suspensos e três prateleiras gigantes, em alguns outros apartamentos a lavanderia adquire a configuração de uma despensa, as prateleiras servem pra guardar comida além do espaço fornecido na cozinha, afinal de conta oito pessoas precisam de muito alimento, é interessante porque aqui no meu isso nunca aconteceu, a nossa lavanderia é basicamente um quartinho da bagunça, as prateleiras são cheias de produto de limpeza, sacos de lixo, manuais do fogão, máquina de lavar, geladeira etc, sem contar as garrafas de vinho e azeite vazias que demoram a ir pro lixo e ficam lá com outras coisas que a gente acha que vai precisar em algum momento e não jogamos fora.

É interessante observar que o mesmo ambiente possui diversas funções dependendo da demanda dos moradores, todos os cômodos, com exceção da cozinha, aqui são coringa então acaba que de apartamento para apartamento a configuração dos móveis e de outros itens de decoração muda, e em alguns blocos o apartamento é espelhado, então a lavanderia troca de lado na planta geral, mas essa coisa de usar a lavanderia como uma extensão da cozinha ou então um lugar pra por plantas, ou no caso aqui de casa um quartinho da bagunça é imprevisível, pode ser que daqui um tempo a gente precise das prateleiras pra outros motivos e então aos poucos elas adquiram um outro significado. 













Skincare x banho



O banheiro aqui tem uma configuração interessante, existe um bloco para o box, um para a privada (esses dois bem privados) e um local com a pia, aqui nem porta te separa do corredor, então nada de se trocar fora do box, a pia conta com uma torneira automática então o banheiro tem bem a cara de que saiu direto do CAD, o balcão da pia é bem grande, então logo os espaços foram demarcados por copos com escovas de dente, saboneteiras, cremes, a territorialidade aqui tem quase a mesma força da geladeira, mesmo com um espaço enorme de baixo da pia, dificilmente a gente coloca as coisas lá.
O box tem uma janela vertical, e eu sinto que de algum ângulo da pra ver as pessoas tomando banho no andar de baixo mesmo que nunca tenha conseguido, de início nenhum dos moradores deixava itens no box, mesmo com um parapeito bem convidativo pra deixar saboneteira, então por muito tempo era um local sem territorialidade, porém aos poucos apareceram shampoos, esponjas, e logo cada um construiu seu próprio espaço.



Do lado de fora


A área verde do condomínio é imensa, cheia de árvores frutíferas e conta com um salão de uso social, desde que os apartamentos foram ocupados também ocupamos a área externa, praticamente todos os moradores já utilizaram e utilizam essas áreas, o salão inicialmente seria ocupado por uma mesa de sinuca e uma de ping-pong e uma televisão.
O salão foi o primeiro ambiente apresentado a nós moradores quando chegamos, houve uma reunião com os responsáveis pela obra, equipe de administração e os representantes das três moradias, a função coletiva do mesmo é nítida desde o início, antes da pandemia sempre aconteciam festas por lá e espero que pós vacina elas voltem.
O primeiro objeto a chegar foi a mesa de ping-pong, demonstrando mais uma vez o uso coletivo do local, é como se a FUMP quisesse que nós moradores interagíssemos entre a gente a fim de criar laços afetivos. 
O tempo foi passando e um sofá e um banco apareceu no salão, logo depois uma mesa e prateleiras que logo se encheram de livros e revistas, acredito que esses objetos tenham sido doados pelos próprios moradores, desde o sofá até os livros, mostrando mais uma vez a força de quem frequenta o local de mudar sua configuração.
O terceiro objeto a chegar foi a televisão a um ano atrás, na época também estava passando BBB e diariamente uma massa de pessoas se deslocavam dos apartamentos para o salão para assistirem juntas ao programa, mas assim que a quarentena teve início a mesma foi retirada e ninguém sabe onde ela foi parar.
No meio da quarentena instalaram a mesa de sinuca, mas infelizmente ela nunca foi nem aberta ao público, ela fica lá enrolada em plásticos e nunca nem vimos os tacos.
O jardim é minimamente delimitado, é como se fosse um aviso de não pise na grama mas extremamente chamativo, assim que as primeiras mangas aparecem sempre tem alguém utilizando do gramado, dos moradores aos funcionários da manutenção e limpeza que também integram parte da vida no condomínio, algumas pessoas leem livros, tomam sol, colocam suas plantas no ar livre, conversam sentadas na grama, por mais que exista essa limitação muito singela, é obvio que uma área verde grande como a daqui seria usada pelos moradores.
Existe também um estacionamento e um bicicletário, duvido que vocês adivinhem qual é mais ocupado por estudantes de baixa renda kkkkk o estacionamento serve mais para carga e descarga quando necessário e acho que uma moradora apenas possui carro, porém assim que houve uma feira na moradia o local foi utilizado, montaram barracas e um palco e de estacionamento passou a ser um local de confraternização. Ainda sobre esse espaço, no início da quarentena quando as academias fecharam os moradores também o utilizavam como local de exercício, principalmente como pista de corrida. O bicicletário é ocupado por objetos dos moradores, porém eventualmente se tornou o local de descanso do pessoal da manutenção, alguns almoçam e dormem ali mesmo após o almoço.

Avenida Fleming


O espaço habitável entre as coisas... bom se você for da classe média belo horizontina a avenida é mais convidativa pra ser habitada, o meu condomínio fica ao lado do Vila Rica, um centro gastronômico e comercial, e é nítido que apenas andar na frente do local causa desconforto a quem o frequenta, durante o dia os portões ficam abertos e você pode passar de uma rua para a de cima porém assim que os bistrôs abrem ninguém que não consome se atreve a entrar e até mesmo a calçada se torna parte do local, a rua aqui é um domínio público que parece restrito a essa classe social mais abastada que frequenta os bares e restaurantes da região, no geral é difícil encontrar os moradores daqui socializando nesse espaço além dos condomínios.
Acredito que por ser muito próximo a lagoa, um lugar mais convidativo a todos, a grande maioria dos moradores se encontram e interagem mais por lá, é como se a rua atendesse essa função de deslocamento de forma literal, existindo até uma ciclofaixa da lagoa até o topo da avenida, porém pouco se vê de uma vivência na rua em si, sem crianças brincando, sem vizinhos conversando por mais que um estante, afinal nada é muito convidativo a menos que você esteja disposto a entrar e pagar.

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